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Channel: a Bica » precário saltimbanco
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Não estarás

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Estou do outro lado do mundo e quando chegar a Lisboa não estarás. Encontrarei vazio no quarto que ocupavas, na praceta da nossa infância que se vê da janela e na resposta aos meus dilemas. É um vazio tão grande que cabe neste subcontinente indiano, neste caos desmedido, neste mundo transbordante de cores e buzinas, que hoje mirra devagarinho a cada passo que te aproxima do aeroporto.

 

O meu amigo vai para longe.

 

Nestes meses em que me tentei abstrair da injustiça que te tinham imposto, muitos disseram-me para não dramatizar: que ias ganhar mais, que ias conhecer África, que ias começar de novo, que porventura ias para melhor. Desculpa, mas não quero saber: dramatizo. Dramatizo porque ninguém devia ser obrigado a sair da sua cidade contra a sua vontade, para preservar o seu trabalho e para não sucumbir ao fantasma do desemprego. Muito menos, tu. Estudaste e trabalhaste para teres o teu conforto na cidade que amas, junto aos teus, aos amigos que nunca ignoraste. Nunca tiveste ambições luxuriantes nem desmedidas. Procuravas a felicidade no teu bairro, na mais simples das buscas – a da vida de afectos -, que acompanhavas com o dedilhar de uma guitarra. Uma música serena que decidiram interromper.

 

Calaram o meu amigo.

 

Sim, eles, os que condenaram o país à penúria e ao desemprego, foram eles que silenciaram a tua balada. Tu não és um emigrante, és exilado. Tu e esta geração de cérebros saudosos, este talento que efervesce noutras paragens. Mataram a construção, a arquitectura, a enfermagem, a engenharia, a medicina, as letras, a ciência. Incentivaram à fuga, como cavaleiros do apocalipse que dão uma última oportunidade de sobrevivência antes da aplicarem a estocada letal.

 

Os filhos da puta levaram o meu amigo.

 

Ao longo destes dois anos de crise, acompanhei várias histórias de famílias, amigos e casais separados por uma emigração forçada. Notei em todos eles uma mágoa profunda, um nó na garganta e uma cara que se encovava ao lembrarem-se de quem partiu, como a peste camusiana que de porta em porta vai arrancando irmãos, não para sempre mas até um dia. A peste acordou-me esta manhã. Segredou-me que a sua estirpe não é a negra, que hoje há mail, skype e Facebook para curar o tumor da ausência, mas ao ver a sua mão ossusa apercebi-me que não terei a tua pele, a tua música, o teu abraço, os teus berros a ver o Benfica, o teu toque no ombro a dizer deixa lá, estou aqui, como sempre.

 

Quando chegar a Lisboa, não estarás.

 

E dramatizo. Porque até podes ir para melhor, mas a nós fazes-nos falta.


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